sexta-feira, 18 de setembro de 2009

"A palavra é o fio de ouro do pensamento"

Pode ser um pouco angustiante pensar em quanta coisa interessante vai passar longe dos nossos sentidos até o inexorável último suspiro. Pessoas, lugares, músicas, todo tipo de originalidade e de lugar-comum. Mas é sobre literatura que gostaria de falar.

Das artes mais “acessíveis” (muitas reticências aqui...), a literatura é a que demanda mais tempo para ser consumida. Claro que um bom disco (ou qualquer tipo de manifestação artística) pode demorar anos até ser bem entranhado, mas o primeiro contato que requer um tempo mínimo maior sem dúvida é a leitura de um livro: deve-se gastar no mínimo uma hora na chance que decidimos dar ao escritor para que prenda nossa atenção.

Nunca achei que a escolha de um volume deva ser feita ao acaso. Ao contrário: como disse, não temos todo o tempo do mundo, há muita coisa boa por aí. E sabemos como é frustrante ler um livro mal escrito. Como selecionar? O acaso deve ser desprezado, penso; a intuição, não. Pessoalmente, sigo um conselho dado pelo meu pai no início da minha vida de alfabetizada: “leia os clássicos”.

Por motivos óbvios, a leitura de um clássico tem muito menos chances de frustrar o leitor. Sobre este tema, Calvino escreveu um artigo cujos preceitos transcrevo abaixo:

1. Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: "Estou relendo..." e nunca "Estou lendo...".

2. Dizem-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições de apreciá-los.

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual.

4. Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira.

5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.

6. Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer.

7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

8. Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe.

9. Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos.

10. Chama-se clássico um livro que se configura como equivalente do universo, à semelhança dos antigos talismãs.

11. O "seu" clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele.


12. Um clássico é um livro que vem antes de outros clássicos; mas quem leu antes os outros e depois lê aquele, reconhece logo o seu lugar na genealogia.

13. É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo.

14. É clássico aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível.

"Resta o fato de que ler os clássicos parece estar em contradição como nosso ritmo de vida, que não conhece os tempos longos, o respiro do otium humanista; e também em contradição com o ecletismo da nossa cultura, que jamais saberia redigir um catálogo do classicismo que nos interessa."

Ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. Na última tentativa de sensibilizar o leitor sobre a valia do esforço, Calvino finaliza o artigo citando Cioran:

"Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. 'Para que lhe servirá?', perguntaram-lhe. 'Para aprender esta ária antes de morrer'".

Nenhum comentário: